A contribuição da Engenharia de Produção para os Sistemas de Saúde

Quase todos os países do mundo se comprometeram em melhorar o planeta e a vida de seus cidadãos até 2030. Esses países estão alinhados com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de mudança de vida, delineadas pela ONU em 2015, que incluem, entre outros aspectos, a prestação de melhores cuidados de saúde às pessoas. Desde antes do início da Segunda Guerra Mundial (1945), já existia relatos de problemas evidenciados nos sistemas de saúde, como dificuldade dos funcionários em lidar com novos equipamentos, procedimentos mal elaborados, entregas de suprimentos atrasados em razão de prescrições impróprias, etc. No entanto, como disse Michio Kaku, físico teórico estadunidense: “What we usually consider impossible, are simply engineering problems… there’s no law of physics preventing them”. Traduzindo, ainda que não literalmente, a visão sistêmica da engenharia proporciona que problemas sejam vistos como desafios, e não como barreiras.

Os sistemas de saúde são, ou até mesmo, mais complexos que as indústrias. Demandam recursos que são fundamentais e que têm impacto direto no atendimento do paciente (cliente), como por exemplo, aparelhos para realização de exames, salas de cirurgias, instrumentos cirúrgicos, sendo necessário estar disponíveis na quantidade e no tempo certo. Médicos, enfermeiros, psicólogos e técnicos em geral (operadores), devem estar bem posicionados de modo que a prestação do serviço seja em tempo hábil e de forma eficaz, sem margens para erros. Além disso, existe a preocupação constante de se reduzir os custos, bem como eliminar os desperdícios. Enfim, podemos dizer que os hospitais são fábricas de saúde.

Para solucionar ou melhorar este cenário, hospitais em todo o mundo têm usado estratégias, ferramentas e técnicas conhecidas e difundidas na área industrial, como o uso de ferramentas e métodos de fabricação enxuta. O Lean, ou produção enxuta, é uma abordagem que proporciona à organização um aumento da produtividade, reflexo da eliminação dos desperdícios. É por meio do Pensamento Lean (do inglês original, Lean Thinking, 1992) que o valor é especificado, que pessoas são envolvidas nos objetivos de desempenho operacional e que as barreiras do crescimento são ultrapassadas. Em outras palavras – fazer mais com menos – é a regra que constrói a base do Lean thinking. Anos depois, denominado de Lean Healthcare (termo utilizado pela primeira vez em 2002), criado exclusivamente para indicar as aplicações de técnicas de manufatura enxuta na área da saúde, conforme Figura 1. As técnicas, aplicações e conceitos da Engenharia de Produção, indo ao encontro das premissas sustentadas pelo Lean Healthcare, possibilitam ao Engenheiro de Produção uma visão holística sobre o que agrega valor ou não nos processos hospitalares.

Figura 1 – Linha do tempo do estudo do lean

Instituições hospitalares que buscam obter alta eficiência em seus processos contribuem tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista social. O aspecto econômico é impactado por ser uma área onde existe uma alta empregabilidade, desde cargos que têm relação direta (médicos, enfermeiros e técnicos em geral) com a assistência à saúde, até cargos que não possuem ligação direta (secretários, diretores, engenheiros e contabilistas), mas que são fundamentais para manter a máquina hospitalar funcionando à todo vapor. Diante disso, é evidente o interesse dos hospitais em buscar alternativas que irão melhorar a sua gestão para que possam disponibilizar um serviço de qualidade, ao mesmo tempo em que os custos são reduzidos e o que não agrega valor é eliminado.

– Bom, isso então, não se trata de uma das características inerentes de todo Engenheiro de Produção? Os princípios do Lean Healthcare são apenas um caminho, entre tantos outros, que o engenheiro de produção se apropria para criar soluções que irão reduzir os desperdícios e aumentar a produtividade com menor custo e com maior qualidade.

Portanto, para gerir fluxos e processos em um ambiente de alta complexidade, como é característico do hospitalar, se faz necessário o posicionamento do engenheiro de produção em áreas consideradas chave para qualquer indústria (da saúde ou não). A visão geral de um hospital nos remete à quatro grandes áreas em que a presença de um profissional desse tipo é indispensável: (i) áreas assistenciais; (ii) apoio gerencial; (iii) apoio logístico; e (iv) apoio técnico.

Figura 2 – Visão geral de um hospital
  1. Áreas assistenciais: As diretrizes clínicas desdobram-se em guias de orientação prática dos protocolos assistenciais, que tem por objetivo orientar a front-line de cuidado de pacientes e a organização de recursos. O papel do engenheiro de produção em áreas assistenciais é de extrema importância, seja no planejamento e controle das operações, como por exemplo, previsão da entrada de pacientes na emergência, quanto na organização e criação de procedimentos para o centro cirúrgico. Dois pontos fortes do engenheiro de produção, entre tantos, é a capacidade de caminhar bem entre os métodos estatísticos e probabilidade e de técnicas de simulação. O uso da estatística e da probabilidade (bases do conhecimento em Lean Six-sigma) podem auxiliar no planejamento adequado de recursos e alternativas de ações eficazes em momentos de adversidade, muito comum em instituições de saúde. A função da simulação, por outro lado, entra para criar e analisar planos que podem ser utilizados em casos de haver um aumento repentino pelas pessoas por cuidados de saúde. Um exemplo recente foi o surgimento do COVID-19, que tem lavado milhares de pessoas a procurarem os sistemas de saúde, causando superlotação de leitos e UTI’s e utilizando recursos não planejados.
  2. Apoio gerencial: A atuação de engenheiros de produção em áreas de apoio gerencial é vista como um grande diferencial nos hospitais. Pela sua formação multidisciplinar, é possível que o profissional de engenharia assuma cargos de alta hierarquia estratégica dentro dos hospitais, como por exemplo, gerente financeiro, coordenador de planejamento, diretor de qualidade, gerente de projetos, etc. O engenheiro de produção possui a capacidade de desenvolver uma visão técnica detalhada acerca do desempenho dos principais processos que contribuem para a melhoria da assistência à saúde, e criar soluções de baixo custo para serem implementadas. Uma ferramenta que tem sido amplamente utilizada dentro das práticas do Lean healthcare, não somente como apoio gerencial, mas logístico e técnico também, é o Mapeamento de Fluxo de Valor (MFV). Essa ferramenta deve estar sempre ao alcance de todo engenheiro de produção, pois, por meio dela, é possível visualizar o processo por completo e representar de forma gráfica o fluxo de materiais e informações, o que permite aos stakeholders uma visão mais transparente dos processos, além de tornar mais claro a identificação de valor, de desperdícios e suas respectivas fontes.
  3. Apoio logístico: Os conceitos de Just time (JIT) e Kanban, pilares do pensamento enxuto, talvez seja o que melhor explica o objetivo do apoio logístico dentro dos hospitais. Esses dois conceitos foram considerados elementos-chave da eficácia e sucesso do Sistema Toyota de Produção (STP). O engenheiro de produção, por sua vez, detém esse conhecimento que o coloca em posição de implementar em qualquer área, inclusive, em operações logísticas da saúde. O JIT é uma técnica que se utiliza de várias normas e regras que irão contribuir para melhorar o fluxo de materiais dentro da organização, isto é, uma técnica de gerenciamento. Em outras palavras, alinhado com o senso comum, JIT significa que cada processo deve ser suprido com os itens e quantidades certas, no tempo e no lugar certo. Uma maneira do engenheiro de produção alinhar quantidade demandada no tempo requerido, é por meio de um sistema Kanban. Portanto, para alcançar o JIT, se torna premissa básica o movimento passo-a-passo de materiais em pequenos lotes (tamanho ideal de um, ou seja, fluxo unitário). Na medida em que o fluxo unitário não é possível, são utilizados os cartões Kanban, que, em breve conceito, são considerados sistemas de reabastecimento de operação que permitem que a demanda do cliente inicie a operação. Em outras palavras, o consumo de um material, cria uma demanda para reabastecimento. Sistemas Kanban já foram (e ainda são) utilizados, por exemplo, em unidades de diagnóstico e em centros de materiais esterilizados para garantir reabastecimento em tempo hábil de suprimentos.
  4. Apoio técnico: Até aqui, já foi possível observar que o engenheiro de produção tem campo de atuação amplo, desde o segmento industrial até a área de serviços. Percorre sem maiores problemas pela área da logística, gerencial e assistencial. Além disso, outras áreas também são de interesse do profissional contemporâneo, como gestão da tecnologia,

Mas, quando se trata de apoio técnico às especialidades específicas (como pediatria, enfermagem e oftalmologia), até que ponto o engenheiro de produção tem autonomia para criar e propor soluções de melhorias? Na verdade, os serviços que compõem o apoio técnico, nada mais são, do que processos realizados para entregar valor ao cliente. Analisando sob esse prisma, as ferramentas do Lean healthcare se encaixam perfeitamente no processo de busca pela melhoria contínua. Um assunto cada vez mais emergente e que tem auxiliado hospitais a melhorem seus resultados globais (tratamento de pacientes, descoberta precoce de doenças e otimização de recursos) é a Inteligência Artificial (AI). Não é trivial falarmos que o engenheiro de produção pode caminhar com tranquilidade em diversas áreas. Mas, sobretudo, nesse novo cenário tecnológico que se apresenta, esse profissional, devido a sua visão sistêmica e habilidades matemáticas, associadas com uma base sólida em gestão, são capazes de contribuir com excelência na resolução de problemas cada vez mais complexos, como os de saúde. Com o apoio da AI, os pacientes e a equipe médica podem receber alertas acerca de eventuais mudanças na saúde de seus pacientes meses ou até anos antes que os sintomas apareçam. Portanto, a AI, sem dúvidas, surge como um braço importante que o profissional de engenharia de produção deve estudar para auxiliar na resolução de problemas e tornar mais assertiva a tomada de decisão.

Muito embora essas sejam às áreas principais de um hospital que demandam cada vez mais soluções imediatas e eficazes, o profissional de engenharia de produção não deve se limitar a atuar em apenas uma, haja vista a interdependência dessas áreas e a importância de outras áreas colaterais. O mercado de atuação em hospitais ainda é recente para esse profissional, por isso, o desenvolvimento de pesquisas que difundam as potenciais contribuições do engenheiro para os sistemas de saúde se tornam cada vez mais fundamentais.

Referências

Tortorella, G. L., Fogliatto, F. S., Anzanello, M., Marodin, G. A., Garcia, M., & Reis Esteves, R. (2017). Making the value flow: application of value stream mapping in a Brazilian public healthcare organisation. Total Quality Management & Business Excellence, 28(13-14), 1544-1558.

Costa, L. B. M., Filho, M. G., Rentes, A. F., Bertani, T. M., & Mardegan, R. (2017). Lean healthcare in developing countries: evidence from Brazilian hospitals. The International journal of health planning and management, 32(1), e99-e120.

Lean Healthcare Situação Atual e Perspectivas para a Engenharia de Produção. Disponível em: http://abepro.org.br/arquivos/websites/51/LeanHealthcareDesafiosPerspectivasEngenhariaProdu%C3%A7%C3%A3o.pdf

Wachs, P., Gayer, B. D., Marcon, É., Bueno, W. P., & Saurin, T. A. (2019). A lean approach on hospital flow management. Journal of Lean Systems, 4(4), 53-61.

Ghinato, P. (1995). Sistema Toyota de Produção: mais do que simplesmente just-in-time. Production, 5(2), 169-189.

Mazzocato, P., Savage, C., Brommels, M., Aronsson, H., & Thor, J. (2010). Lean thinking in healthcare: a realist review of the literature. BMJ Quality & Safety, 19(5), 376-382.

Bruno Miranda dos Santos
Engenheiro e Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutorando em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor dos cursos de graduação em Engenharia de Produção e Administração, das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT).

One Reply to “A contribuição da Engenharia de Produção para os Sistemas de Saúde”

  1. Nessa época de crise, se da muita ênfase em operações assistenciais e a gestão acaba sendo negligenciada, esquecendo-se que ela é primordial para o funcionamento e eficácia justamente da assistência ao paciente. Também sou pesquisadora da área e por isso achei pertinente trazer o destaque que a gestão de operações tem a contribuir para saúde.

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